Um livro recém‑lançado investiga como pessoas negras escravizadas recorreram a estratégias de defesa legal gerações antes da abolição, revelando práticas de resistência invisibilizadas pela história tradicional. A obra compila casos locais, documentação judicial e relatos de ação jurídica, colocando em evidência movimentos de autonomia e de exigência de liberdade que contrastam com a narrativa de passividade que costuma predominar em registros históricos. Essa pesquisa inédita redefine a compreensão sobre protagonismo negro e resistência institucional.
A pesquisa que originou o livro está vinculada ao projeto “Juiz de Fora: Cidade Negra”, desenvolvido por um laboratório universitário que há anos mapeia a presença africana e negra na paisagem social, cultural e política da cidade. Os autores, com formação em história e educação, dialogam com ativismos e coletivos locais, o que reforça a abordagem comprometida com memória social e reparação. O envolvimento acadêmico e comunitário permite que as vozes silenciadas sejam confrontadas no presente, revisitando arquivos e estratégias jurídicas usadas para reivindicar liberdade.
Documentos extraídos de cartórios, processos judiciais e petições mostram que pessoas escravizadas recorreram à justiça para reivindicar alforrias, contestar situações de trabalho abusivo, contestar sucessões ou exigir reconhecimento de direitos civis mesmo enquanto sob cativeiro. Em muitos casos, elas utilizaram instrumentos legais disponíveis, recorreram a médiuns de legislação vigente e buscaram autorização narrativa para tornar visíveis suas demandas. A persistência dessas iniciativas evidencia um sistema jurídico que, embora desigual, abria espaços para resistência e ação individual ou coletiva.
Além disso, o livro aponta que essas iniciativas não ocorriam isoladamente. Existiam redes de apoio, solidariedade entre pessoas escravizadas, familiares livres, antigos cativos, advogados e membros de igrejas ou movimentos religiosos. Essas alianças multiplicavam possibilidades de acesso à informação e a recursos jurídicos. O fluxo dessas redes é tão importante quanto os documentos formais, pois sustentava estratégias de defesa legal que dependiam de mobilizações sociais conjuntas, comunicação entre pessoas interessadas e cooperação mútua.
Outro componente essencial refere‑se ao processo de percepção de si como sujeito de direito. A atuação jurídica pressupunha que a pessoa escravizada reconhecesse não apenas um mal imediato, mas a legitimidade de sua ação no espaço público comparando‑se com pessoas livres. Esse reconhecimento implicava certo nível de autonomia de pensamento, de consciência legal e de capacidade de agir nos interstícios de regras legais. Quem morava sob escravidão tinha de atravessar barreiras de educação informal, de poder e de acesso restrito ao direito. O livro enfatiza que essa consciência existia mesmo sob severas limitações.
A publicação também convoca uma reflexão sobre o presente. Recuperar essas histórias ajuda a perceber como desigualdades persistem estruturadas sobre traços de racismo e heranças de um passado jurídico desigual. A memória dessas lutas serve como ferramenta crítica para educadores, legisladores e atores sociais que desejam construir políticas de reparação efetivas. Compreender as estratégias jurídicas do passado ilumina caminhos para justiça contemporânea, reconhecimento e reestruturação institucional.
O lançamento do livro será acompanhado por oficinas comunitárias nas quais se discutirá memória, resistência e liberdade negra. Esses encontros pretendem conectar acadêmicos e público em geral, fomentar debates públicos e reforçar que contar essas histórias é mais do que registrar o passado, é operar no presente para afirmar dignidade. A iniciativa demonstra que história, direito e ativismo se entrelaçam quando se trata de justiça social.
O impacto da obra promete ser multiplicador. Para além de Juiz de Fora, ela incentiva outras localidades a revisitar seus próprios arquivos e redescobrir protagonismos ocultos. Instituições de ensino poderão usar essa pesquisa como referência de ensino, e iniciativas culturais como memória pública podem incorporar essas narrativas invisibilizadas. A importância dessa obra está não apenas na reconstrução histórica, mas no estímulo a reconhecer direitos hoje.
Autor: Liam Smith