É muito comum, e se acredita que muitos já ouviram, o jargão popular do “quem cala consente”. Mas qual seria o limite de sua abrangência? Apesar de ser muito popular no senso comum, não há espaço para tal posicionamento no Direito Penal, sendo mais um caso onde um costume popular não se insere na aplicação do Direito e seus procedimentos.
No entanto, não se pode dizer que esse jargão nunca fora usado na aplicação do Direito, pois já ocorreu tal fato.
Até o início da década de 2000, mais precisamente o ano de 2003, estava em vigor, no Código de Processo Penal, uma versão anterior do artigo 186, em que se podia observar o seguinte:
Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que Ihe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.
Em entendimento pessoal, acredito que tal dispositivo legal, à época, auxiliou na formação e manutenção deste jargão do “quem cala consente”, sendo assim, conhecido e utilizado atualmente.
Constituição Federal e seus princípios
Apesar do artigo, citado acima, estar vigente até o período de 2003, desde 1988, com a promulgação da Constituição Federal, muito se era discutido sobre a inconstitucionalidade desse dispositivo normativo, visto que a própria Carta Magna, em seu artigo 5º, inciso LXIII, diz que:
LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Com isso, vê-se que a própria Constituição contradizia expressamente a antiga escrita do artigo 186 do Código de Processo Penal, trazendo-se, portanto, uma grande discussão jurídica penal sobre a função do silêncio na defesa processual.
Além da própria menção da Constituição sobre o dispositivo, tem-se, também, o Pacto de São José da Costa Rica ( Decreto nº 678/1992), que em seu artigo 8º, inciso 2, alínea g, diz que:
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
[…]
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada; e
[…]
Ambas as legislações acima influenciaram diretamente para que, em 2003, por meio da Lei nº 10.792/2003, fosse implementada uma modificação no artigo 186, passando a vigorar, até os dias de hoje, o seguinte texto:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Além da modificação legislativa do Código de Processo Penal, esses dispositivos foram diretamente responsáveis para a criação de dois direitos essenciais na defesa do acusado, principalmente em relação aos processos criminais: o direito ao silêncio e o princípio da não autoincriminação.
Apesar de haver tal modificação legislativa com o passar do tempo, é de imensa importância que se entenda que tais modificações não são produzidas de forma direcionadas a um desejo político de “libertar ou facilitar” a defesa do acusado. Como foi dito em muitas outras ocasiões, o Direito está em constante modificação, assim como a própria sociedade.
A modificação do direito acompanha o avanço e desenvolvimento dos indivíduos e sua interação com o meio e outras pessoas.
Prova de que tal criação, do direito ao silêncio e do princípio da não autoincriminação, não são situações direcionais, é a influência de uma norma internacional no ordenamento jurídico brasileiro, o Pacto de São José da Costa Rica, demonstrando que tal modificação da norma não é uma discussão apenas do Direito brasileiro, mas, também, de outros ordenamentos jurídicos de diversos países, a exemplo do próprio Estados Unidos da América, que, em seu ordenamento jurídico adota a chamada 5ª Emenda Constitucional, a qual diz:
No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actual service in time of War or public danger; nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be taken for public use, without just compensation.
Que, em uma tradução livre, pode ser lida como:
“Ninguém será detido para responder por um crime capital, ou outro crime infame, a não ser sob apresentação ou acusação de um Grande Júri, exceto em casos ocorridos nas forças terrestres ou navais, ou na Milícia, quando em serviço efetivo em tempo de Guerra ou perigo público; nem qualquer pessoa será sujeita pelo mesmo delito a ser duas vezes colocada em risco de vida ou integridade; nem será obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo, nem ser privado da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem a propriedade privada será tomada para uso público, sem justa indenização”.
Isso demonstra que o princípio a não autoincriminação não é uma espécie de “egoísmo jurídico” ou uma defesa sem lógica do acusado.
É preciso sempre distanciar o senso comum do estudo do Direito. Apesar de o Direito ser fruto da própria sociedade e se modificar a partir dela, o ordenamento jurídico brasileiro não é um conjunto de normas que segue um estudo próprio e segue, principalmente, os direitos e princípios basilares da própria sociedade.
Portanto, mesmo que um grupo específico clame, por exemplo, pelo linchamento de um acusado de um crime, isso não pode ser admitido pelo ordenamento jurídico, pois o Direitos está acima de desejos individuais, ele é um instrumento que possibilita a harmonia social, que possibilita a convivência de diversos indivíduos distintos em um mesmo espaço territorial.
Direito ao silêncio e interrogatório
Agora que já foi apresentado o conceito do direito ao silêncio e, brevemente, seu surgimento, é importante demonstrar, no processo, o momento em que ele pode ser exercido, que é o interrogatório.
Apesar de haver diversas discussões sobre a natureza jurídica do interrogatório, irá se adotar, aqui, a ideia de que o interrogatório é um momento processual, inserido na audiência de Instrução e Julgamento (se em caso de processo) ou como procedimento no Inquérito Policial, em que o acusado ou indiciado tem a possibilidade de apresentar sua defesa pessoal, bem como produzir provas.
A parti disso, Nucci (2020) diz que:
Denomina-se interrogatório judicial o ato processual que confere oportunidade ao acusado de se dirigir diretamente ao juiz, apresentando a sua versão defensiva aos fatos que lhe foram imputados pela acusação, podendo inclusive indicar meios de prova, bem como confessar, se entender cabível, ou mesmo permanecer em silêncio, fornecendo apenas dados de qualificação. O interrogatório policial, por seu turno, é o que se realiza durante o inquérito, quando a autoridade policial ouve o indiciado, acerca da imputação indiciária.
Assim, seguindo os ditames do artigo 187 do Código de Processo Penal, é possível observar que o interrogatório pode ser dividido em duas partes, a primeira sendo para qualificar o acusado (interrogatório de qualificação); a segunda parte se refere ao mérito em si, buscando-se saber a versão dos fatos apresentadas pelo réu.
Segundo Nucci (2020), com relação à qualificação não haveria o que se falar em direito ao silêncio, visto que o objetivo, nessa primeira parte, seria confirmar os dados do réu para que ele possa ter os dados corretos ao ser processado.
O autor ainda trata de uma segunda parte do interrogatório, que viria antes do mérito, em que seria perguntado ao acusado características pessoais de modo a determinar as causas de fixação da pena, conforme o artigo 59 do Código Penal, tentando, assim, determinar a personalidade do agente, antecedentes, culpabilidade, etc., sendo denominado por ele como interrogatório de individualização.
Considerações finais
Dito isso, tem-se que o interrogatório apesar de algumas controvérsias sobre sua natureza jurídica, bem como o direito ao silêncio aplicado a esse momento processual, ainda sim, tem importância essencial em sua aplicação durante o procedimento penal.
Alguns autores penais, inclusive Nucci (2020), como o advento do direito ao silêncio e o princípio da não autoincriminação, defendem um posicionamento de que o interrogatório deveria ser um ato facultativo, pois, se uma faculdade a manifestação do réu para responder às inquirições, então o procedimento somente deveria ocorrer se fosse solicitado ao magistrado.
Apesar de seu uma aplicação diferente no conceito do interrogatório, tal posicionamento ainda não possui uma defesa majoritária.
Diante disso, o que se deve ser levado em consideração, no momento atual, é que o interrogatório, apesar de disponibilizar o direito ao silêncio ao réu, ainda é um ato obrigatório e, portanto, deve ser seguindo, caso contrário, poderá ser gerada uma nulidade processual.